sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um novo velho amigo

Naquela amanhã eu tinha decidido que iria no Haras que tinha perto de casa!! Tudo por que eu peguei o ônibus errado no dia anterior e andei uns metros a mais em um dia super estressante! Como não tinha mais nada a fazer do que andar, resolvi andar devagar. Então eu comecei a perceber os sons a minha volta em um bairro calmo da região. Percebi também que eu andava do lado de um muro super alto e branco de aproximadamente uns três metros de altura. De dentro desse muro muitas árvores apareciam e invadiam a calçada dando uma sombra agradável, foi então que notei de onde vinham os sons doces dos pássaros. Mais ao longe eu ouvi o som que me fascina desde menina: Cavalos. Comecei a ficar curiosa para saber onde terminava esse muro sem fim e que cavalos seriam esses. Apressei o passo e quanto mais rápido andava mais cavalos eu ouvia, mais pássaros cantavam e então eu senti algo que me faz parar para simplesmente sentir... o vento!!! Uma brisa agradável que mais parecia um carinho dos céus me acalmando e me dizendo que tudo vai ficar bem! Levantei o rosto para o céu e vi o azul sendo pintado de nuvens brancas apressadas. O vento acariciava meu pescoço e fazia meus cabelos voarem... que sensação ótima! O stress nessa hora parecia ter me abandonado e uma esperança invadiu meu peito, de que tudo iria mudar dali em diante. Meu coração foi invadido por uma oração de gratidão. Então voltei a apressar o passo, mas dessa vez os sentimentos que me invadiam eram outros. Queria ver o final do muro e saber dos animais que ali estariam.

Num portão alto e fechado, branco como todo o resto do muro, uma fresta nada pequena me deixou ver o interior. Um homem estava varrendo o chão calmamente, como se tivesse a vida inteira para terminar o trabalho. Sempre me surpreendo com pessoas assim, afinal de contas eu vivo correndo sempre.

Fiz questão de chamá-lo, no que ele prontamente largou a vassoura feita de um tipo de mato, parecia mesmo que ele tinha tirado aquilo das folhas de uma árvore como uma palmeira ou coisa parecida.

Ele se aproximou com um sorriso tímido, olhos profundos, mas de doce olhar, costas curvadas pela idade, abriu um portãozinho que tinha na lateral, esticou a mão e me cumprimentou com suas mãos calejadas e muito grossas. Logo perguntei para ele que lugar era esse que tinha cavalos tão perto da cidade e se eu podia alugar um para andar e... mal conseguia parar de falar e perguntar quando notei o sorriso dele com um olhar diferente...

_ Sempre recebemos pessoas aqui como você. Essa cidade deixa as pessoas malucas mesmo.

Comecei a rir de mim mesma e da simplicidade daquele senhor tão simpático.

_ Calma filha, esse é um Haras, mas também tem cavalos para serem alugados. Já há algum tempo os donos resolveram colocar animais para alugar já que a procura se tornou muito grande. Essa hora já está tarde para todos e os animais já foram recolhidos, por que não volta no sábado?

Achei a idéia ótima e me programei para tirar tudo o mais da minha vida no sábado, separei um dinheiro para alugar um cavalo e naquele sábado bem cedo eu estava lá.

Lá estava aquele senhor perto da porta como se estivesse me esperando. Eu cheguei lá perto das sete da manhã, tamanha minha ansiedade para entrar em um lugar que para mim é parte do paraíso. Cavalos são animais nobres, sensíveis, amigos, fiéis e inteligentes e, especialmente para mim, fascinantes!

Percebi que tinha muita gente andando por ali, provavelmente donos dos cavalos, alunos, professores de equitação, e visitantes como eu. Acredito que a mais maravilhada e com cara de boba era eu mesma!

Lindos animais de todo tipo, raças caras como corcel, mustang, mangalarga, e outros que não conheço por ser uma amante desses animais à distância. Melhor dizendo, não uma especialista...

Seu Manoel me levou até um galpão com várias baias e me disse para eu escolher o que eu queria para andar.

_ Seu Manoel, nasci e fui criada na cidade, andei de cavalo três vezes na minha vida e acredito sinceramente que não tenho a menor condição de escolher um bom cavalo, seguro para passear nesse lugar tão lindo.

_ Não se preocupe, esses são os mais calmos e treinados. Tudo o que você precisa fazer é escolher um que você sinta no seu coração que te ajudará a ter um passeio inesquecível. Tenha calma, e pegue aqui uns torrões de açúcar para dar para eles. Dê somente um para cada um... olhe e escolha com calma.

Caminhei entre eles sem saber para onde olhar primeiro, pois todos eles eram muito bonitos!

Então comecei a andar devagar, olhar um por um, falar com eles e olhar no fundo dos olhos de cada um acreditando piamente na sensibilidade tão falada desses animais fabulosos. Foi quando eu o vi. Um cavalo mais baixo que os outros, quieto e parecia me pedir algo com os olhos. Estendi a mão com um torrão de açúcar e ele pegou de forma bem cuidadosa. Como ele não se mexeu do lugar eu acariciei sua cabeça levemente. Ele foi para trás mancando muito e notei que sua pata traseira direita estava muito machucada, com uma bandagem já suja dele ter ficado deitado. Não sei explicar o porque, mas não conseguia sair dali para continuar minha escolha. Fiquei ali um tempo até que percebi nele uma tristeza muito grande. Quase que instintivamente abri a cancela e libertei o que eu chamava de amigo agora. Dei outro torrão de açúcar e ele parecia me acompanhar lentamente até a relva que não ficava longe dali. Caminhamos lentamente até um tronco grande no chão onde eu me sentei. Parecia uma dessas árvores enormes e antigas que sofreram com cupins e caíram praticamente inteiras. Sentei-me e ele parecia me fazer companhia. Nesse momento eu já tinha desistido de cavalgar, tamanha a paz que sentia misturada com uma satisfação por ter uma companhia especial. Ele comeu a relva nas proximidades de onde eu estava e eu falava com ele como se fosse um amigo antigo.

Não demorou para que o seu Manoel notasse que a baia errada fora aberta e que o Demolidor não estava ali. Preocupado andou na direção de onde estávamos e logo nos avistou. Não tínhamos ido longe, mesmo por que Demolidor não podia andar muito. Ele ficou ali por alguns instantes observando a nós dois e sorriu de leve. Sem querer, pelo menos sem eu querer, ficamos no lado contrário de onde todos estavam. Só estávamos eu e ele. A paz que senti naquele momento é uma dessas coisas que não se explicam. Só quem já sentiu isso sabe do que estou falando. Depois de alguns minutos seu Manoel se aproximou de nós dois e se sentou do meu lado. Eu sorri e disse:

_ Não devia ter aberto a baia dele, não é? Mas confesso que não resisti ao olhar dele que parecia pedir para andar um pouco aqui fora.

_ Eu trabalho com cavalos a minha vida toda e já vi de tudo. Esse cavalo gostou de você e uma afinidade entre vocês é muito clara para mim. Você compreendeu o que ele precisava e ele sabia que você poderia entendê-lo. Ele, quando estava bom da perna, corria por esses pastos livremente e ganhou muitas corridas. Era o Demolidor. O dono dele, um homem sem coração e muito rico, gordo, enorme, o comprou por um bom preço depois que ele ficou um pouco mais velho e não podia mais ganhar nenhum prêmio. Apesar das insistentes explicações que dei para ele, ele, ainda assim, quis andar no cavalo que estava acostumado somente a jóqueis. Nesse passeio ele o forçou a pular um buraco, mas com todo aquele peso em cima dele ele enroscou a pata traseira na beira do buraco e foram os dois para o chão. Ele quebrou a pata em três lugares e normalmente sacrificamos animais assim. Mas esse homem gritou que não tinha gasto seu dinheiro para matar o animal agora. Mandou que o veterinário arrumasse a perna dele para vender depois para o primeiro trouxa que aparecesse. Isso foi há três meses. Desde então ele fica preso na baia sozinho e somente o veterinário e eu nos aproximamos dele.

_ Entendo... ele me pediu para passear um pouco... mas parece que ele sente o fim da vida chegando... tão estranho...

_ É isso mesmo. Ele está muito velho e já devia estar morto por conta da perna. Duvido que o homem consiga vendê-lo... É um animal condenado!!!

Ficamos lá nem sei por quanto tempo. Conversamos sobre tudo daquele lugar. Seu Manuel trabalhou para esse mesmo homem a vida inteira. Ele viu Demolidor nascer e se tornar uma lenda entre os jóqueis e apostadores. Acompanhou suas derrotas e sua velhice. Eram amigos também.

Depois de um tempo Demolidor deitou-se do nosso lado e ficou quietinho esperando algo. Nos levantamos e o levamos calmamente para a baia. Ele obedeceu. Senti pena dele ao mesmo tempo que um carinho inexplicável. Ele me ensinou que temos que aceitar o que a vida nos traz e devemos fazer o melhor com o que temos, aproveitando as oportunidades e amigos que nos aparecem.

Depois disso seu Manoel me confiou outro belo cavalo para eu passear pelos lindos caminhos daquele lugar incrível no meio da cidade. Todo tipo de árvores foram plantadas lá, e um lago artificial foi colocado em um dos lados do campo. O passeio foi muito gostoso. Era uma cavalo marrom com grandes manchas brancas e a crina de duas cores. Macho, calmo e muito obediente. Ao menor toque da rédea ele mudava e obedecia. Me senti um ser terrível. Nunca soube ser tão obediente como ele. Quanto a gente aprende com esses animais.

O tempo acabou e eu voltei para a baia. Seu Manoel estava ajudando outros então aproveitei para dar uma olhada nas redondezas do galpão. Fui com o cavalo malhado bem devagar. Parei a uma boa distância para ver outros cavalos lindos sendo cavalgados e que jamais seriam alugados pelo preço que eles custavam a seus donos. Cavalos da mais pura raça e de portes diversos. Causavam espanto e admiração da minha parte. Dei dois tapinhas no pescoço do malhado e disse para ele, você é tão bom como eles, pois você é obediente e bondoso. Dei um daqueles leves puxões na rédea fazendo aquele barulho característico com a boca e ele prontamente mudou de lado voltando para a baia. Seu Manoel estava me observando de novo. Desci dele e agradeci pela tarde fabulosa que tivera. Prometi voltar no próximo sábado. Seu Manoel parecia entender todas as coisas a sua volta, como se tivesse um ouvido para cada coisa e pessoa que estava por lá. Acho que a experiência faz isso com as pessoas de bom coração.

No sábado seguinte eu voltei como quem volta para um velho amigo. O portão estava aberto e eu fui direto para a baia do Demolidor. Vazia. O malhado estava ali, mas eu não sabia onde estava o seu Manoel. Andei por ali em busca de informação. Um rapaz me avisou que seu Manoel estava perto do carvalho caído. Entendi que era onde eu estivera no sábado passado. Fui para lá e seu Manoel estava sentando com um aspecto triste e reverente. Sentei-me do lado dele sem dizer uma palavra por um tempo.

_ Ele se foi não é seu Manoel?

_ Sim. Eu o enterrei ali na frente. Morreu na terça.

Foi então que eu notei o monte de terra com uma madeira simples com um nome escrito por um bom canivete ou algo do gênero: “Demolidor”.

Oportunidades são coisas que não podemos perder nunca. Fiz um amigo feliz antes de deixar esta terra. Com ele aprendi a sempre fazer isso com todos, animal e gente. Dar o melhor que temos e levar a reverência onde quer que estejamos. Observar com calma as coisas a nossa volta. Sentir o coração e ver nos olhos a alma dos que nos rodeiam. Aprende-se muito com os animais e com os mais velhos.

Seu Manoel ficou comigo ali em silêncio um tempo e depois fui dar meu passeio com malhado que, aliás, tinha o nome de Smooth.